“Considerando o período que vivemos, a
sociedade brasileira deve estar atenta e mobilizada para defender os
seus direitos e impedir retrocessos”. O alerta é do farmacêutico Ronald
Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da
Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar). Nesta entrevista, ele
comenta os desafios a serem enfrentados pelo setor brasileiro de
medicamentos em médio e longo prazo. Dentre eles, a judicialização do
acesso ao sistema de saúde, a vulnerabilidade na produção de
imunobiológicos e o estabelecimento de Parcerias para o Desenvolvimento
Produtivo (PDPs). Para o farmacêutico, no horizonte dos próximos 20 anos
o principal entrave aos avanços na área diz respeito a retrocessos
fiscais que podem se concretizar no curto prazo, por exemplo, por meio
da PEC 241/2016. “Se essa agenda for aprovada, é possível que o Sistema
Únido de Saúde (SUS), como o conhecemos hoje, deixe de existir. Neste
cenário, não só medicamentos não estarão mais disponíveis para a
população, mas a própria saúde pública do país, com universalidade,
integralidade e equidade, conforme preconiza a Constituição Cidadã de
1988, estará em xeque”, destaca.
Em setembro comemora-se o Dia
Nacional de Luta por Medicamento e o Dia Internacional do Farmacêutico.
Qual a importância dessas datas para a construção de um sistema de saúde
universal e equitativo?
Comemorado em 25 de setembro, o Dia
Internacional do Farmacêutico tem como missão unir os profissionais e
conscientizá-los em relação ao contexto social e econômico desse
trabalho no mundo. No Brasil, o ano é de resistência e defesa dos
direitos conquistados pela população no processo de construção de um
sistema de saúde universal e equitativo. Já o Dia Nacional de Luta por
Medicamento, 08 de setembro, convida a classe a se aproximar dos
cidadãos. O CNS propôs que os diversos conselhos estaduais e municipais
realizem atividades alusivas aos 26 anos da publicação da Lei 8.080/90,
celebrados em 19 de setembro. A legislação, que define a saúde como um
direito fundamental do ser humano e um dever do Estado, regulamenta o
SUS, criado pela Constituição Federal de 1988.
Os princípios constitucionais,
entretanto, encontram-se hoje ameaçados. A PEC 241/2016, em fase de
tramitação, agrava o histórico de subfinanciamento do setor ao prever o
congelamento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos – sem considerar
sequer o crescimento e o envelhecimento populacional.
Concomitantemente, foi constituído grupo de trabalho, por meio da
portaria ministerial nº 1.482, de agosto de 2016, para discutir e
elaborar o projeto de planos de saúde acessíveis. O CNS posicionou-se
contrário à proposta, por meio da resolução nº 534 de 19 de agosto de
2016, solicitando, inclusive, imediata revogação da portaria.
A rede Brasil Saúde Amanhã vem
realizando o exercício de prospecção estratégica do futuro do sistema de
saúde brasileiro, com o horizonte móvel de 20 anos. Quais os desafios
colocados hoje para que tenhamos, de fato, medicamentos para todos em
2036?
O primeiro grande desafio é o de manter a
luta permanente em defesa do SUS. Todo ataque ao sistema deve ser
combatido, principalmente no que diz respeito ao seu financiamento. Não
se pode ter dúvidas sobre o seu tamanho e o seu papel, que vai além da
garantia da saúde, já que a sua atuação se reflete de modo estratégico
no desenvolvimento do país. Além disso, a Política Nacional de
Assistência Farmacêutica (resolução nº 338/05 do CNS) deve nortear as
políticas setoriais e estar inserida na Política Nacional de Saúde.
A garantia de acesso a medicamentos
essenciais por todos os brasileiros passa pelo debate de que país
queremos e de qual a responsabilidade do Estado enquanto indutor da
Política de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. É preciso garantir
que o medicamento seja visto como insumo essencial para garantia do
direito à saúde. Assim, o compromisso com o acesso racional aos
medicamentos, norteado pelos princípios do SUS, tem como premissa a
defesa da Constituição, da democracia e da Saúde como dever do Estado.
Considerando o longo prazo, como o senhor avalia os programas Farmácia Popular do Brasil e Saúde Não Tem Preço, do Ministério da Saúde?
Ambos os programas devem se vistos como
parte de uma estratégia que busca facilitar o acesso da população a
medicamentos. O Farmácia Popular do Brasil realiza esta missão em suas
duas modalidades, a partir das unidades da própria rede e da sua
expansão para o setor privado, através da iniciativa Aqui Tem Farmácia
Popular. O Saúde Não Tem Preço, por sua vez, abrange remédios indicados
para o tratamento de hipertensão, diabetes e asma, doenças crônicas não
transmissíveis com alta incidência na população. Esses medicamentos são
entregues aos pacientes de forma totalmente gratuita. As iniciativas têm
cumprido importante papel, embora seja necessário estarmos atentos para
que elas não venham a substituir o acesso aos medicamentos nas unidades
de saúde. Hoje, o número de pessoas medicadas a partir dos serviços da
Atenção Básica do SUS é muito maior do que aquelas que obtiveram seus
tratamentos por meio dos dois programas. E isso deve continuar.
O repasse de recursos aos municípios
para o custeio da assistência farmacêutica precisa ser mantido e
ampliado, pois hoje este ente federativo arca com o maior percentual dos
investimentos, se comparado com o repasse da União e dos estados. É
preciso garantir que não haja duplo financiamento da assistência
farmacêutica nos municípios, já que hoje o paciente pode ter acesso
tanto pelas unidades de saúde quanto pelo programa Farmácia Popular do
Brasil. Quanto à ampliação dos programas, não creio que deva ser natural
que o número de princípios ativos ofertados seja crescente. Deve haver a
priorização de alguns medicamentos, mas é preciso investir e garantir o
acesso prioritário pelas unidades de saúde, com racionalidade. Enfim, o
programa tem sido importante alternativa de acesso nesses 12 anos de
existência, mas é preciso avançar mais.
O estabelecimento de PDPs tem
sido uma estratégia prioritária para a redução das vulnerabilidades do
Brasil na produção de medicamentos – ação que requer a centralização das
compras do Estado. Como conciliar esta atuação com a extrema
descentralização da assistência farmacêutica no SUS?
Entendo que devemos analisar esse tema
sob duas óticas. Uma é a da política das PDPs, que é estratégica para o
desenvolvimento de medicamentos e equipamentos para o SUS. Outra é a da
priorização de fármacos a serem produzidos por essas parcerias. Nesse
sentido, é importante destacar que as PDPs são de fundamental
importância para o desenvolvimento científico e tecnológico, a promoção
da inovação, a redução do déficit da balança comercial do setor Saúde e a
diminuição de gastos.
Considerando que a aquisição
centralizada pelo Ministério da Saúde é fundamental para a definição dos
produtos estratégicos para o SUS, objeto prioritário das PDPs, não
entendo que possa haver entrave com a descentralização da assistência
farmacêutica. Já existem experiências exitosas de compra centralizada de
medicamentos do componente especializado, que devem ser utilizadas como
base para as futuras parcerias.
Atualmente,
o componente especializado e o programa de medicamentos para HIV/Aids
consomem quase dois terços dos recursos do Ministério da Saúde para a
assistiência farmacêutica. O crescimento de ações na justiça para a
obtenção de medicamentos caros consome recursos adicionais. Isso não
agrava a oferta de medicamentos usados pela a maioria da população?
A judicialização do processo de obtenção
de medicamentos é pauta permanente do CNS. Temos debatido o tema com
outras instituições, tendo claro que é preciso encontrar uma solução
para o problema. É preciso, entretanto, ter cuidado em relação à forma
como abordamos o tema, já que o acesso aos medicamentos é um direito
constitucional. O problema não está em buscar a via judicial como forma
de garantir o tratamento, mas em qual medicamento foi prescrito, para
qual finalidade e se não existia alternativa terapêutica disponível.
Por isso, é fundamental que a Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais esteja permanentemente atualizada,
incorporando novas tecnologias, desincorporando o que se torna obsoleto e
garantido aumento de recursos para a assistência farmacêutica. O debate
a ser feito deve apontar quem será o principal beneficiado com a
prescrição que originou a demanda judicial: o paciente ou outro agente
da cadeia de medicamentos? A não disponibilidade do medicamento que
porventura tenha gerado a demanda judicial é um problema de gestão ou de
descompromisso com as relações de medicamentos e com os protocolos
terapêuticos?
Como presidente do CNS, quais as principais ameaças à sustentabilidade do SUS, nos próximos 20 anos?
Hoje, o SUS encontra-se sob forte
ameaça. Esse patrimônio do povo brasileiro, conquistado com muita luta,
está sob ataque, principalmente no que diz respeito ao seu orçamento. As
ameaças estão traduzidas em dois movimentos do executivo atual junto ao
congresso nacional. Uma é a PEC 241/2016, que pretende congelar gastos
públicos por 20 anos, descumprindo a Constituição Federal pela via
fiscal. Um dos maiores retrocessos da proposta é a definição de que os
investimentos não mais estarão atrelados ao percentual mínimo da
receita, como ocorre hoje. Ao estipular um teto de gastos com base no
investimento realizado no ano anterior, neste caso 2016, o governo
livra-se da vinculação de receita. A segunda ameaça, de impacto ainda
mais imediato, está nas mudanças constitucionais propostas pelo Projeto
de Lei de Diretrizes Orçamentarias (PLDO 2017), que retira direitos
sociais e prejudica o SUS.
Os objetivos expressos no PLDO 2017 e na
PEC 241/2016 estão voltados para a redução das despesas com Saúde,
Educação, habitação, mobilidade urbana e outras áreas sociais, em prol
da retomada do superávit primário necessário para o pagamento dos juros e
da amortização da dívida pública – despesa que não teve teto
estabelecido para os próximos anos. Em outros termos, foi abandonado o
objetivo de distribuição de renda, substituído por um mecanismo
explícito de concentração de riquezas como política de governo. Se essa
agenda for aprovada, é possível que o SUS, como o conhecemos hoje, deixe
de existir. Neste cenário, não só medicamentos não estarão mais
disponíveis para a população, mas a própria saúde pública do país, com
universalidade, integralidade e equidade, conforme preconiza a
Constituição Cidadã de 1988, estará em xeque.
Fonte: saúde amanhã - Fiocruz
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